Há livros que nos atravessam e simplesmente sabemos falar pouco ou nada sobre eles. Você que é leitor já deve ter lido alguma história muito boa, indicado essa história e tentado explicar os motivos que a fazem ser incrível, mas tudo, absolutamente tudo parecia escapar – tão grande, profunda e transformadora que essa história foi para você.
Talvez neste momento eu esteja nessa posição. Talvez agora eu tente concatenar adjetivos, descrever de maneira afetada e apenas talvez eu consiga fazer com que você sinta o gostinho agridoce da experiência que tive ao ler Conceição Evaristo.
Antes de falar da obra em si, gostaria de falar do contexto. Conceição Evaristo é uma mulher negra, nascida e criada em situação de vulnerabilidade social, e que escreve, resumindo sua vasta obra, sobre essa realidade: ser mulher, ser negra, ser pobre, ser vítima, violentada, discriminada, amada. Escreve sobre isso e sobre mais.
Em Olhos D’Água ela remonta um quebra-cabeça social que soca o estômago do leitor em cada peça colocada ou retirada. O livro é uma amarração de 15 contos que falam sobre mulheres, amores, violências. Sobre pobreza, alegrias pequenas, maternidade, estupro, cotidianos caóticos. Fala sobre o que a gente precisa ler – mas nem sempre está disposto a ouvir.
Fiquei pensando sobre como eu resenharia esse livro para vocês e de como os convenceria de que essa é uma leitura tão boa quanto necessária (embora essa posição pareça pretensiosa). Seria pouco efetivo falar sobre cada conto de maneira particular, então tentarei apenas dizer como me senti olhando para a obra como um conjunto, mas também sobre um conto em particular que me afetou profunda e dolorosamente.
Como já mencionei, as quinze histórias contadas em Olhos D’Água são sobre assuntos poucos abordados na literatura que vende em vitrine de livraria. São histórias ora sobre como transformar a dor em uma flor em desabrochamento, ora sobre como essa mesma dor é a lágrima que escorre – gerida no medo, fermentada na dureza da vida e abortada pelos olhos em um lamento quase sempre silencioso.
Em Olhos D’Água Conceição Evaristo é crua. Desnuda a realidade marginalizada de maneira sensível, verossímil e pouco vista. Alguns longos, outros curtos, cada conto toca pelo assunto, pela abordagem, pela escrita. É algo que enxergamos (ou fingimos não enxergar) todos os dias na rua. Ela aborda o que a sociedade aborta de maneira consentida – o termo choca porque é, também, pouco discutido de maneira verdadeira.
E por falar nisso quero falar sobre o conto Quantos filhos Natalina teve? Escolhi-o porque acredito que ele dá conta de revelar a face mais resumidamente próxima do que é a obra como um todo. Nele, a autora conduz sua narrativa pela vida de Natalina, suas gestações, seus (in)desejos, suas fomes. Natalina é uma mulher vítima em potencial, uma mulher forte, uma mulher. A pergunta que dá título ao livro é justificada durante todo o conto: quantos filhos ele teve por querer, por quererem por ela, pela violência que impuseram a ela?
De maneira verdadeira e nua, a autora expõe mazelas pelos olhos dos seus próprios protagonistas. É isso que dói, causa empatia e nos faz pensar. É isso que arregala nossos olhos e fazem deles poços de lágrimas (águas rasas escapadas).
Talvez eu tenha chegado até aqui sem despertar em você, leitor, pouco ou nenhum interesse pela obra. Talvez eu tenha sido generalista, pedante a absurdamente apelativo. Mas assim, combinemos: os livros que nos atravessam de tal maneira causam esse furor mesmo. Nunca sabemos como recomendar.
Enfim, está feita a recomendação. Espero sinceramente que vocês se deem a chance de conhecer esta ou qualquer outra obra da autora. Se banhem nas palavras da Conceição. Deixem que ela seja atravessamento para vocês.
Em "Olhos d’água" Conceição Evaristo ajusta o foco de seu interesse na população afro-brasileira abordando, sem meias palavras, a pobreza e a violência urbana que a acometem.
Sem sentimentalismos, mas sempre incorporando a tessitura poética à ficção, seus contos apresentam uma significativa galeria de mulheres: Ana Davenga, a mendiga Duzu-Querença, Natalina, Luamanda, Cida, a menina Zaíta. Ou serão todas a mesma mulher, captada e recriada no caleidoscópio da literatura em variados instantâneos da vida? Elas diferem em idade e em conjunturas de experiências, mas compartilham da mesma vida de ferro, equilibrando-se na “frágil vara” que, lemos no conto “O Cooper de Cida”, é a “corda bamba do tempo”.
Em "Olhos d’água" estão presentes mães, muitas mães. E também filhas, avós, amantes, homens e mulheres – todos evocados em seus vínculos e dilemas sociais, sexuais, existenciais, numa pluralidade e vulnerabilidade que constituem a humana condição. Sem quaisquer idealizações, são aqui recriadas com firmeza e talento as duras condições enfrentadas pela comunidade afro-brasileira.
Ronaldo!
ResponderExcluirGosto demais de livros de contos e quando a autora tem a ousadia de enfrentar a sociedade e falar sobre problemas pungentes e necessários, porém que ficam escondidos, à mercê do desalento total, tenho de admirar e procurar ler a obra, porque é fundamental.
Bom final de semana!
“A melhor mensagem de Natal é aquela que sai em silêncio de nossos corações e aquece com ternura os corações daqueles que nos acompanham em nossa caminhada pela vida.” (Desconhecido)
cheirinhos
Rudy
TOP COMENTARISTA dezembro 3 livros + 2 Kits papelaria, 4 ganhadores, participem!
Durante a leitura de sua resenha, a unica coisa que eu me pergunta e se tinha sido escrita por uma mulher, ou por um homem, e lhe digo com muita alegria, que me surpreendi quando vi que era um homem. Talvez seja pela sua indignação, e pela facilidade em sentir empatia pelas estórias que eram retratadas nos contos. Primeiramente queria dizer que sou feminista e abraço esta luta, por isto gosto deste tipo de livro que retrata a realidade em que milhares de mulheres vivem, e a existência da vulnerabilidade social, que influência a vida desda pessoa, a levando a ter de cometer atos, que talvez seria diferente se sua história pessoal fosse outra completamente diferente. Enfim, eu ainda não conhecia este livro, porém me interessei pela leitura, e com certeza irei lê-lo, e tenho a visão de que vai me trazer muitos aprendizados, reflexões e questionamentos, como aconteceu com você. Parabéns pela resenha incrível.
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